O silêncio dos intelectuais (Adauto Novaes)

Ora, se a situação do intelectual hoje é complicada, se sua condição está em cheque, é porque ele fez uma série de escolhas que o conduziram a isso. Vejamos, de maneira sucinta, algumas delas:
A primeira e uma das mais importantes é a apontada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk: pensando a revolução, o intelectual contemporâneo errou de alvo: ela estava sendo conduzida não pelo proletariado, mas pela técnica. No fim, o jogo foi feito, a revolução aconteceu e os intelectuais revolucionários não perceberam o que se passava. Muitos elementos nos levam a crer, escreve Sloterdijk, que deixamos o espaço das revoluções políticas para entrar no das revoluções técnicas e mentais – o que obrigatoriamente põe fim ao papel clássico do intelectual. Sloterdijk acerta no diagnóstico, mas deixa muitas dúvidas quanto ao significado do termo ‘intelectual’, uma vez que, para ele, “o revolucionário profissional hoje é o designer ou o consultor, e suas missões não têm nenhuma relação com o antigo estatuto do revolucionário profissional no seminário de filologia e de sociologia”. No mesmo sentido, Jacques Derrida vai mais longe: para ele, a “alta tecnologia” ou a tele-tecnologia faz de cada trabalhador, “cidadão ou não”, um ‘intelectual’: “Deduzo, a partir daí, que, exceto traindo sua ‘missão’ (nova traição dos clérigos), um intelectual reconhecido jamais deveria escrever ou tomar a palavra publicamente nem ‘agir’ em geral sem pôr em questão o que parece dispensar explicação, sem procurar associar-se aos que se vêem privados do direito à fala e à escrita, sem exigir isso para eles – diretamente ou não. Daí a necessidade de escrever em outros tons, de mudar os códigos, os ritmos, o teatro e a música... Não acredito dever abrir mão das responsabilidades, dos deveres e dos poderes que ainda me são, a título de ‘intelectual’, reconhecidos”.

Pode-se verificar, hoje, a ‘segunda traição dos intelectuais’ na relação que esses têm mantido com os novos meios de comunicação, em particular os audiovisuais, aos quais costumam atribuir equivocadamente sua própria crise e a do pensamento. Tal postura é no mínimo uma indelicadeza dessa ‘República’ que deve grande parte do seu prestígio à relação que mantém com a televisão. Relação essa que, em si, não é o problema, mas que se transforma nele quando o intelectual se submete à lógica dos meios, traindo os princípios universais de luta da Razão, da Liberdade, da Justiça e da Felicidade. Ao contrário, quais são os temas que os intelectuais são convidados a discutir, hoje? Poder, luta de interesses, economia doméstica, jogos amorosos... Lemos na introdução ao Tratado da natureza humana, do filósofo David Hume, uma passagem que define perfeitamente a questão: “As discussões multiplicam-se, como se houvesse apenas incerteza. Em toda essa agitação, não é a razão que ganha, é a eloqüência; encontram-se defensores do proselitismo para as mais extravagantes hipóteses se forem bastante hábeis para pintá-las com cores favoráveis. A vitória não é garantida pelos soldados em armas... mas pelas trombetas, tambores e músicos do exército”. Não é preciso dizer quem são os músicos. Em um texto sobre as razões de certa ‘decadência’ da filosofia, que, em última análise, é um libelo sobre a decadência intelectual, Jacques Bouveresse escreve: “Os intelectuais não perdem a ocasião de relembrar que a escravidão e outras instituições consideradas hoje como inteiramente inaceitáveis foram durante muito tempo descritas e aceitas como ‘naturais’ e inevitáveis. Mas a idéia de que as injustiças e as desigualdades por vezes escandalosas que reinam na sua própria sociedade resultem simplesmente da natureza das coisas habitualmente não os incomoda. É a razão pela qual os intelectuais de esquerda que enchem a boca com as palavras ‘democratização’, ‘descentralização’, ‘autonomia’, ‘multiplicação dos centros de decisão’ etc. achem, no final das contas, inteiramente normal, no seu próprio domínio, que o essencial do poder seja concentrado nas mãos de algumas dezenas de ‘intellocrates’”. Os ideais de igualdade e justiça e o direito à crítica são sempre bons para as outras profissões, nunca para a própria.

Outro problema posto aos intelectuais por eles mesmos foi a instauração do reino do relativismo. Certa tendência estruturalista da década de 70 levou a desqualificar, em nome de poderes anônimos, todo trabalho intelectual que buscasse certa universalidade. No famoso texto Os intelectuais e o poder, diálogo entre Foucault e Deleuze, lemos, por exemplo, que os intelectuais descobriram, enfim, “que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muitíssimo bem. Mas existe um sistema de poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber”. Mais radical é a tese: “Não temos que totalizar o que só se totaliza do lado do poder, e que só podemos totalizar, do nosso lado, restaurando as formas de centralismo e de hierarquia. Em contrapartida, o que temos a fazer é chegar a instaurar as ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares”. Luta “não por uma tomada de consciência (há muito tempo que a consciência como saber é adquirida pelas massas, e que a consciência como tema é tomada, ocupada pela burguesia)... mas pelo poder”. A teoria deve ser, pois, local e regional, não totalizadora. E certamente, também, o poder. O texto "Os intelectuais e o Poder" sugere pelo menos dois grandes problemas, além da evidente destituição do objeto do intelectual que são os universais: como definir esse sujeito impessoal (as massas) e como lidar com uma teoria que abole uma das noções fundantes do pensamento clássico, a subjetividade consciente e voltada para a ação? Ora, esse sonho de comunidades autônomas da década de 70 parece não ter prosperado. Mais: a própria idéia de comunidade é desacreditada pelo ceticismo estabelecido e, de certa forma, a recusa contemporânea da razão é uma expressão disso. Nesse sentido, Bouveresse aponta que a concepção reinante hoje “é a de grupos humanos reunidos em um espaço e por um tempo limitados por um sistema de convenções arbitrárias, cambiantes, e funcionando de maneira mais ou menos tirânica. O estruturalismo conseguiu combinar de maneira expressiva os três ingredientes que são os mais susceptíveis de seduzir um homem tão instruído e desabusado como o de hoje: o determinismo psicológico, sociológico e cultural, o relativismo e o cientificismo. É, aliás, em grande parte por causa da impressão que ele dá de ser nitidamente mais ‘científico’ do que seus adversários que o relativismo extremo conhece hoje um sucesso tão considerável”.

O ceticismo é, pois, outro tema posto pelos e para os intelectuais hoje. Dele, é possível selecionar várias expressões: desde o ‘tudo se equivale’ até a manifestação explícita de que não é mais possível dizer o que é verdade. Paul Veyne, historiador de renome, afirma, por exemplo: “As ciências não são mais sérias do que as letras e, uma vez que em história os fatos não são separados de uma interpretação e que se pode imaginar todas as interpretações que se quiser, o mesmo pode acontecer com as ciências exatas”. Conformismo desse tipo não deixa de ser um traço marcante entre os intelectuais contemporâneos.

Adauto Novaes foi jornalista e professor. Estudou filosofia na França. Foi diretor, durante 20 anos, do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura. Organizou – entre outros – os seguintes ciclos de conferência, que depois viraram livros, a maioria editada pela Companhia das Letras, nos quais publicou ensaios: Os sentidos da paixão, O olhar, O desejo, Ética, Tempo e História (Prêmio Jabuti), Rede imaginária – televisão e democracia, Artepensamento, A crise da razão, Libertinos/libertários, A descoberta do homem e do mundo, A outra margem do Ocidente, A crise do Estado-nação (Record), O avesso da liberdade, O homem máquina, Civilização e barbárie e Muito Além do Espetáculo (Editora Senac São Paulo).

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