Transcrição: A Gramática Amorosa da Amizade

Transcrição de parte do texto: - Ágora: - Estudos em Teoria Psicanalítica
ISSN 1516-1498 versãoimpressa
Ágora (Rio J.) v.10 n.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2007
doi: 10.1590/S1516-14982007000200011

A grande diferença entre o amor e a amizade, como escreve Michel Tournier, "é que não pode haver amizade sem reciprocidade." Ele tem razão, pois não se pode ser amigo de alguém que se recusa a sê-lo.
O amor, em compensação, nem sempre é pago na mesma moeda, e isso desde os primeiros anos de vida, desde que, na criança, nasce o sentimento amoroso dirigido à mãe, e isso desencadeia a decepção de não ser tudo para ela. Basta, como Freud notou de maneira precisa em 1920, que uma nova criança surja na casa para que a mais velha se dê conta da "amplidão do desdém em que seu quinhão se transformou". Assim, desde muito cedo, o pequerrucho é desencorajado e decepcionado em sua demanda de amor exclusivo. Ele deve partilhar a pessoa amada com outros, sendo preciso, aqui, dar lugar especial ao laço com a mãe, que é o primeiro objeto de amor não apenas do menino, como Freud pensou durante bom tempo, mas também da menina. Ele descobriu isso tardiamente, em 1931, e teve de revisar sua teoria da sexualidade feminina. Acrescenta-se a essa constatação outro ponto essencial, o recalque inevitável desse laço, comparável, em termos freudianos, à derrocada da civilização micênica e bastante difícil de vir à tona em análise.
Na criança, a amizade nasce como contraponto ao amor não correspondido, que é experimentado muito cedo, paralelamente à emergência da vida fantasmática e da ambivalência dos sentimentos. As relações de amizade não ocorrem nos bebês que não falam e não andam, nem conhecem a partilha das emoções e das idéias. A escola maternal é encarada pelos pais como um lugar em que é mais fácil para seus filhos, estimulados em diversas atividades, desenvolverem relações de amizades. À medida que a criança cresce, suas amizades se nutrem de críticas sobre seus pais, irmãos e irmãs, assim como sobre as maneiras de viver em família. A esse respeito, a literatura é muito instrutiva, pois permite apreender como a amizade se constrói consciente e inconscientemente sobre a marca da mãe perdida nos primeiros anos da infância. O rastro dessa origem, todavia, não é reconhecido com facilidade.
Quanto a mim, a conjunção entre a experiência da psicanálise e a prática do tratamento permitiu acompanhar as fases de desaparição e ressurgimento desse rastro ao longo de histórias de vida e das amizades descritas em romances. Dito de outro modo, minha reflexão sobre a amizade encontrou eco tanto em leituras quanto em ditos dos meus pacientes.
Não é certo que as formas de amizade tenham mudado consideravelmente ao longo dos séculos, apesar da modernização dos meios de comunicação. Embora seja verdade que escrevemos menos, que nos encontramos mais facilmente e que, hoje, o envio de mensagens é muito rápido, a amizade responde, desde a aurora das civilizações, a uma necessidade essencial de encontro com o outro, renovada ao longo da existência. Não devemos confundi-la com a solidariedade, mas sim descobrir o que nela há de passional e a torna especificamente humana. Esse é o contexto em que, na condição de complemento do amor, do ódio e da ignorância, as três paixões consideradas fundamentais por Jacques Lacan, pareceu-me apropriado abordar a amizade, sempre com respeito à sua especificidade. Sem dúvida, como sublinhou a marquesa de Sévigné, a grande amizade "nunca é tranqüila", algo que pode ser comprovado nas desavenças com que, em geral, não contamos. Quando essas desavenças ocorrem, quase sempre têm efeito semelhante ao de um trovão em céu de brigadeiro. De todo modo, embora a amizade possa revelar-se tão precária quanto o amor, jamais é unilateral como este o é, algumas vezes. A presença do outro, de alguém que responda, do exterior, é obrigatória.
Em seu cotidiano, as crianças pequenas mostram de maneira muito clara a importância da amizade, o isolamento sentido ao chegarem a uma nova escola. Muitas delas lamentam não serem bastante populares em sala de aula, ou menos populares do que outras, assim como se ressentem quando o melhor amigo viaja para outro país ou cidade. Elas não sabem, e não podem saber, que essa situação evoca, mais ou menos, aquela vivida no começo de sua existência, quando, após terem sido despertadas para o amor pelos cuidados, olhares e beijos maternos, realizam que esse amor não lhes era dado tanto quanto almejavam porque suas mães também se interessavam por outras coisas.
A importância dos primeiros laços de amor com o pai, a mãe e os irmãos é central em uma vida. Esses laços dão à amizade sua razão de ser, sua força, bem como os verdadeiros motivos da ruptura desta em nome de uma fidelidade inconsciente às escolhas de objeto originais...

Confira o restante desta pesquisa no site: http://www.scielo.br

Autora da Pesquisa do Site: Danièle Brun - Psicanalista; professora na Universidade de Paris VII – Denis Diderot. dan@club-internet.fr -

Comentários

A amizade é como uma semente e torna-se uma dádiva do cultivo aos que possuem uma boa e temperada terra chamada sinceridade;
Pois somente quem a possue, pode manter e conservar a amizade e num futuro tão próspero de uma boa colheita de grandes amigos...

A semente da amizade somente se conserva num depósito com boas condições de temperatura e num local aconchegante que é o CORAÇÃO.

Boa colheita e muitas sementes!!!

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