SUBJETIVIDADE SEM PSICOLOGIA 2 - por João José R. L. Almeida

Introdução

Um dos maiores problemas filosóficos da psicanálise tem sido o de definir o estatuto da sua teoria, o que envolve esclarecer e justificar seu conceito central, o de inconsciente. Isso pode ser demonstrado nas psicanálises de Freud e de Lacan. Para executar esta tarefa, Freud concebeu sua teoria nos parâmetros de uma ciência natural, adotou uma concepção representativa de linguagem e constituiu uma metapsicologia afigurada em um espaço lógico. A espacialização do inconsciente, porém, isto é, a sua descrição topográfica e vazada em termos de propriedades e relações, obriga à validação da teoria dentro de normas que a psicanálise não pode, simplesmente, cumprir. Além disso, dirige a clínica ao encontro de verdades pontuais e causais que tampouco se verificam. Lacan, no seu retorno a Freud, evitou incorrer no mesmo tipo de confusão conceitual, temporalizando o inconsciente. O tempo lógico é fundamental não só para a clínica lacaniana, é também decisivo para todos os seus conceitos e, em especial, para o de inconsciente. Não obstante, uma parafernália lingüístico-estrutural, entronizada em
posto de honra em suas formulações, convidou a metafísica a regressar em outro patamar do edifício, agora não mais pelo conteúdo, mas pela forma pelas quais foram incorporados os seus conceitos temporalizados e concebida a linguagem. Discutir, sob esta ótica, as conseqüências clínicas e epistemológicas de um e de outro caso, resulta no projeto de investigar a possibilidade de uma psicanálise dotada de uma metapsicologia minimalista. O Naturalismo de Freud Freud, como teórico, cingiu-se de um pressuposto inarredável no decorrer de todos os seus textos: explicar as causas do comportamento irracional e dos sintomas psíquicos, inapreensíveis pela simples neurofisiologia, mediante o único método de composição de conceitos que lhe era possível aventar.
A Freud, seguidor fiel da Escola de Helmholtz (cf. Amacher, 1965), nunca ocorreu formular teorias sobre fatos psicológicos pelo seu aspecto compreensivo, interpretativo ou como descrição contingente do sentido de fatos singulares para os quais não é possível formular leis. Uma possibilidade perfeitamente factível à época do nascimento da psicanálise, já que o texto fundamental do kantiano Wilhelm Dilthey sobre a especificidade das ciências compreensivas frente às explicativas, e sua particular inspiração em Stuart Mill para defender, contra Comte, a cientificidade da psicologia, foi publicado em 1883 (cf. Dilthey, 1883). Os textos de Dilthey estavam não somente disponíveis para a cultura acadêmica alemã da época, como suas idéias eram perfeitamente operantes, no âmbito da filosofia, nos debates epistemológicos acerca da abordagem de fenômenos tipicamente mentais. O pressuposto naturalista foi, portanto, para a nascente psicanálise, assim como para a nascente psicologia alemã em geral, com Fechner e com Wundt, uma surda certeza, um ponto de partida incontestável e um apoio sem o qual, imagina-se, a disciplina não entraria na posse de uma legitimidade teórica e de uma credibilidade acadêmica urgentes e necessárias ao seu interesse para as demais ciências.
O texto Das Interesse an der Psychoanalyse (cf. Freud, 1913) é sintomático desta tentativa de afirmação de legitimidade pela via naturalista. Não há concessões neste ponto. Seguindo o mesmo caminho metodológico proposto por Herman Helmholtz e Emil du Bois-Raymond, e seguido por Ernst Brücke, Theodor Meynert e Sigmund Exner na medicina da mente, Freud estava imbuído do santo fervor de que, para ele, “não há outra finalidade senão a de traduzir em teoria os resultados da observação” (Freud, 1915, p. 218). Ao final de sua vida, Freud ainda avaliava que “os ensinamentos da psicanálise baseiam-se em um número incalculável de observações e experiências” (Freud, 1938, p. 168). Foi a aplicação do método naturalista que conduziu Freud ao entusiasmo arquimédico e à suposição de haver trazido à luz para a humanidade uma descoberta fundamental: o inconsciente. Nas primeiras páginas do artigo metapsicológico de 1915 constatamos de que modo se comprova a imperiosa necessidade do conceito (cf., idem, pp. 192-197):

(a) Os dados da consciência apresentam lacunas a serem explicadas;
(b) Uma apreensão maior do significado das coisas constitui motivo perfeitamente justificável para ir além dos limites da experiência direta;
(c) Os estados psíquicos inconscientes permanecem em estado de latência, mas interferem ativamente no comportamento consciente;
(d) O sistema inconsciente desfruta de plena autonomia em relação ao sistema consciente.

A descoberta e a prova científica da existência de um sistema independente da vida mental, com dinâmica, economia e topografia próprias, funda a psicanálise como uma nova disciplina com uma nova constribuição teórica e clínica. Munida de uma revelação cuja importância humana é comparável à revolução copernicana e à revelação darwiniana (Freud, 1917, p. 11), não é sem razão supor para a psicanálise uma inegável relevância frente às demais disciplinas já bem estabelecidas. Assim postos os termos do argumento, revela-se nitidamente o interesse que a matéria da sua teoria despertaria para a comunidade acadêmica. A reivindicação de um lugar de honra no panteão das ciências é, diante disso, uma conseqüência natural.
Bibliografia
ALMEIDA, João José R. L (2004). “A Compulsão à Linguagem na Psicanálise: Teoria Lacaniana e Psicanálise Pragmática”. Campinas, Tese de Doutorado, IFCH- Unicamp.
Schriften, Band I. Stuttgart, B. G. Teubner Verlagsgeselschaft, 1990. FORRESTER, John (1980). Language and the Origins of Psychoanalysis. London, MacMillan Press. FREUD, Sigmund (1891). Zur Auffassung der Aphasien. Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1993. _______________ (1893). “Quelques Considérations Pour Une Étude Comparative des Paralysies Motrices Organiques et Hystériques”. In: Gesammelte Werke, Band I, Frankfurt a. M. Fischer Verlag, 1987. _______________ (1895). “Projeto de Uma Psicologia”. In: Notas a Projeto de uma Psicologia: As Origens Utilitaristas da Psicanálise. Tradução de Osmyr F. Gabbi Jr. Rio de Janeiro, Imago, 2003, pp. 171-260. _______________ (1900). A Interpretação dos Sonhos, v. II. [Die Traumdeutung, G.W.,3].

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