SUBJETIVIDADE SEM PSICOLOGIA - por João José R. L. Almeida


Apresentação
Desde 1956, portanto há quase meio século, permanece sem resposta a pergunta que Georges Canguilhem dirige à psicologia: “dizei-me aonde vais para que eu saiba o que sois?” (1958, p. 381). Mas o argumento que aquece, prepara e apresenta a pergunta lembra um incômodo ainda mais antigo. Quase trinta anos antes, em 1928, outro não menos brilhante escritor e crítico, Georges Politzer (cf. 1998), derramava suas angústias a respeito da Gestalt, do behaviorismo e da psicanálise, e propunha uma psicologia concreta – antes de desistir totalmente da empresa dois anos depois. Não é uma coincidência fortuita que ambos desemboquem na crítica ao estatuto científico das várias psicologias, já que as marcas das fontes kantianas estão presentes nos dois lugares. Se a psicologia situa-se no âmbito da antropologia, ela não pode senão fazer descrições. Apoiando-se na mesma base, Canguilhem, no entanto, não postula uma solução própria, à diferença de Politzer não faz o papel do construtor, mas filosofa com o martelo. Seu texto, mais especificamente, critica a suposição de haver uma unidade teórica essencial costurando a colcha de retalhos das várias espécies de psicologia; unidade postulada por Daniel Lagache como uma “teoria geral da conduta” (cf. Lagache, 1949). A variedade de definições do quefazer psicológico depende sempre, segundo o autor, de uma retaguarda filosófica, e a suposta unidade não seria muito mais que um pacto de coexistência pacífica. Se a psicologia pudesse definir-se como teoria da conduta, como queria Lagache, ela necessariamente também deveria estar de posse de uma idéia do “que é o homem”. Basta com que nos perguntemos que conduta seria essa para sabermos que somente uma idéia de “homem” poderia diferenciar a conduta humana da animal. Entretanto, a idéia de homem não poderia ser formulada pela própria teoria da conduta humana sem incorrer em petição de princípio. A psicologia teria que buscar a sua matéria prima em outro lugar: na filosofia. A história da psicologia se confunde, por conseguinte, com a variedade da história da filosofia e a diversidade das ciências. Uma história como esta descortina, irremediavelmente, uma multiplicidade de orientações. Neste intervalo de tempo, diz o médico e filósofo, a psicologia foi vista como ciência natural, como ciência da subjetividade (física do sentido externo, ciência do sentido interno e ciência do sentido íntimo) e como ciência das reações e do comportamento. Em conclusão, dada a mixórdia epistemológica, o
estatuto da psicologia permanece mal definido tanto do lado das ciências como do lado das técnicas. Em quase meio século de existência, muitos acorreram à crítica de Canguilhem para buscar refúgio na ironia do seu conselho de orientação: um psicólogo, se saísse do Instituto de Psicologia, na Sorbonne, pela Rue Saint-Jacques, poderia subir ou descer. Se subisse, chegaria ao Pantheon, que é o conservatório de alguns grandes homens, e se descesse, daria na Delegacia de Polícia. Os que se identificaram ao ironista, pretendiam eximir-se de serem confundidos com os metafísicos da vida interior ou com os subservientes da instrumentalização da conduta. Em particular, o valhacouto da Rue Saint-Jacques serviu também para Jacques Lacan (1966, p. 859) e para Jean-Claude Milner (1966). A teoria lacaniana apresentou-se como candidata a aproximar-se do Pantheon, pois justamente havia realizado uma poda razoável na profusa ramificação metafísica da psicanálise. Penso, particularmente, que a pergunta de Canguilhem à psicologia persevera porque a metafísica tem um engenho perspicaz; oculta-se em lugares realmente insuspeitáveis, engasta-se firmemente aos conceitos e multiplica-se de maneira imponderável.
A metafísica parece ser, de fato, um problema crônico. Pode ser divisada até mesmo nas figuras psicopatológicas do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana - DSM-IV (2000), que pretende haver ressecado os problemas filosóficos oriundos da psicologia pela mera descrição empírica dos sintomas na forma de “transtornos” (cf. Sass, 1994). Neste projeto de pesquisa, pretendo colocar a filosofia de volta ao seu serviço terapêutico, que é a análise, a crítica e a dissolução de dificuldades conceituais, e contribuir modestamente com a psicologia e a psiquiatria dinâmica mediante o exame da psicanálise e suas incrustações metafísicas. A crítica da metapsicologia psicanalítica pode resultar na dissolução das figuras colocam a linguagem da clínica em cativeiro. Wittgenstein disse: “Uma figura nos havia prendido. E não podíamos escapar, pois ela residia em nossa linguagem, e esta parecia repeti-la inexoravelmente para nós” (1958, § 115). Pretendo, deste modo, investigar as formações conceituais confusas envolvidas na definição do conceito central da psicanálise, o de inconsciente, nas teorias de Freud e de Lacan, para demonstrar que a multiplicação de teorias, em clínica, põe obstáculos à sua própria prática.
O que chamo de confusão conceitual é a mistura de atividades oriundas de práticas diferentes. No caso da psicanálise, nosso objeto terapêutico e modelo de investigação, mostrando as dificuldades criadas à metapsicologia pelos interesses de legitimação científica. Este é um projeto de investigação de prazo médio a longo, porque a crítica dos fundamentos filosóficos da psicanálise inspira também, a seu modo, uma crítica filosófica da psicologia e dos modelos teórico-clínicos da psiquiatria, posto não só que seus objetos de trabalho e seus supostos têm muitas interseções, mesmo considerando os diferentes e às vezes conflitivos métodos de trabalho, mas também porque nessas disciplinas ainda reina grande obscuridade a respeito da dicotomia mente/corpo. Não raro a psicologia e a psiquiatria também pressupõem a introspecção, a vida interior, o abstracionismo, o formalismo ou o realismo dos fatos psicológicos, não raro ambas as disciplinas perdem-se na busca de uma fronteira entre o orgânico e o mental, não raro elas se ofuscam numa epistemologia opaca. Cumpre esclarecer igualmente que o objeto desta pesquisa não é a temporalização do inconsciente, como aqui estou denominando o procedimenro teórico de Lacan.
O título deste projeto de pesquisa indica, pela expressão, os efeitos filosóficos que uma forma de metapsicologia impõe sobre as teorias psicanalíticas.
Bibliografia ALMEIDA, João José R. L (2004). “A Compulsão à Linguagem na Psicanálise: Teoria Lacaniana e Psicanálise Pragmática”. Campinas, Tese de Doutorado, IFCH- Unicamp. AMACHER, Peter (1965). “Freud’s Neurological Education and its Influence on Psychoanalytic Theory”. In: Psychological Issues 4 : 4. BORCH-JACOBSEN, Mikkel (1990). Lacan, Le Maître Absolu. Paris, Flammarion. BUTLER, Judith P. (1993). Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France. New York, Columbia U. Press, 1987.
fonte:
Projeto de Pesquisa
João José R. L. Almeida

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